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Crash me fez refletir sobre um artigo da Isabelle Ludovico: somos todos seres feridos, mas temos a opção de escolher entre sermos feridos que curam ou feridos que ferem da mesma forma que foram feridos.
Ninguém é melhor que ninguém; não temos o direito de julgar os outros. Quando caímos nesta armadilha, podemos até nos achar superiores porém nos tornamos piores do que as pessoas que julgamos.
FERIDOS QUE CURAM
Provérbios de Salomão, na Bíblia, nos convidam a “entender o nosso próprio caminho” (Pv 14:8) e “estar atentos para os nossos passos” (Pv 14:15). De fato, a maturidade provém da capacidade de compreender a nossa história e integrar as peças esparsas do quebra cabeça que é a nossa existência para enxergar o quadro completo. As experiências marcantes da nossa vida precisam ser consideradas com reverência para encontrar o seu sentido mais profundo e aprender com elas. Tempo e atenção são necessários se queremos evitar a superficialidade.
Fomos criados à imagem de Deus que é Luz. Assim, quanto mais nos aproximamos dele numa atitude contemplativa, mais enxergamos a nossa própria realidade. O olhar amoroso de Deus nos permite superar o medo da rejeição e tirar as nossas máscaras para reconhecer tanto a nossa luz quanto a nossa sombra. Percebemos nossos limites, feridas, mecanismos de defesa e incoerências, mas também nossa aspiração por amor, alegria e paz, nossa capacidade criativa e relacional, nossa busca de sentido existencial.
Identificamos, perplexos, a coexistência simultânea e sistêmica de alegria e tristeza, prazer e dor, sofrimento e paz, amor e solidão. Perceber esta condição da nossa humanidade entra em choque com o desejo de nos apegar a um estado mental dominante e obsessivo como a busca da felicidade permanente. Nossa sociedade a define como a ausência de dor e, para isto, construímos um castelo forte onde estamos protegidos, mas também enclausurados. Poupar-nos do sofrimento acaba nos privando da alegria, pois estes dois sentimentos são parceiros inseparáveis nesta vida. Nossa cultura prega uma felicidade artificial mantida com pílulas que anestesiam a dor camuflando nossa inescapável condição de mortalidade e fragilidade. Solitários e carentes, buscamos compensar o nosso vazio interior mediante um consumismo compulsivo.
O desejo mais profundo de amar e ser amado requer a disposição de baixar as defesas e nos torna vulneráveis. Como diz uma música popular: “Quem quiser aprender a amar, vai ter que chorar, vai ter que sofrer...”. As feridas mais profundas e dolorosas não provêm de acidentes que nos aconteceram, mas do amor. O amor transforma nossa personalidade e nossa percepção. Ele nos arranca de um mundo unidimensional em preto e branco para nos transportar num universo de cores brilhantes e paisagens sempre renovadas. Quando o amor se retrai, sofremos a dor da perda. A alegria do encontro é proporcional à dor do desencontro.
Como diz o teólogo John Main, precisamos diferenciar feridas e machucados. Os machucados como o fracasso num teste, uma derrota financeira, uma expectativa frustrada, são sofrimentos provisórios e superáveis. As feridas nos marcam para sempre. Elas modificam nossa percepção íntima e o fundamento da nossa identidade. Uma ferida significa que nada será como antes. O tempo apaga os machucados, não cura as feridas. Somente a imersão no amor absoluto de Deus pode curar nossas feridas. É preciso mergulhar na morte de Cristo para experimentar a sua ressurreição. O significado das nossas feridas emerge quando as vivenciamos na sua relação com outros eventos e padrões da nossa vida.
Conforme a maneira como lidamos com as nossas feridas, podemos nos tornar feridos que ferem ou feridos que curam. A Bíblia fala de dois tipos de tristeza: uma tristeza ”mundana” que leva à auto comiseração nos faz assumir o papel de vítima e “produz morte”; uma tristeza na perspectiva de Deus que gera transformação e vida (2 Coríntios 7:10). Mergulhando na história da nossa vida, encontramos momentos dramáticos em que tivemos que fazer a escolha crucial de nos tornarmos amargurados por nossas feridas ou feridos que curam. O filme recente “Patch Adams: o amor é contagioso” fala de um homem que fez a escolha de ser um ferido que cura e quase desistiu quando uma nova ferida o empurrou na beira do precipício. Para seu próprio bem e o bem das pessoas à sua volta, ele finalmente escolheu seguir o princípio bíblico de “vencer o mal com o bem”(Romanos 12:21). Na maioria das vezes, optamos por uma solução intermediária mesclando sentimentos de magoa e desejo de superar, passando alternativamente de vítima à protagonista.
Nossa experiência pessoal de feridos curados pelo amor incondicional de Deus é que nos permite aliviar o sofrimento de outros. Enquanto perseguimos nossa felicidade como prioridade absoluta, iremos fazer isto às custas do bem estar do outro. Mas ao buscar minorar a dor do nosso próximo, encontraremos a plenitude de alegria para a qual fomos criados. Ao acolher a realidade com todas as suas facetas, não podemos deixar de perceber o próprio Deus. Cristo é a Verdade e a Vida. Por isto, ao optarmos pela verdade encontraremos a Cristo, assim como através das coisas bonitas podemos enxergar a própria beleza.
A cruz de Cristo proclama que a vida não se preserva negando a morte, mas acolhendo o ciclo de morte e renascimento. Por isto, somos chamados a “levar sempre nos corpo o morrer de Jesus para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo”( 2 Coríntios 4:10). Assim, em vez de fugir do sofrimento através de uma vida artificial, podemos superá-lo com o bálsamo do amor de Deus que transforma o mal em bem. Precisamos olhar para os retalhos espalhados da nossa vida na perspectiva de Cristo que venceu o mal e a morte. Assim podemos costurá-los para formar uma colcha que reflete a obra de arte única que é a nossa existência à luz do amor de Deus e na dependência do Espírito Santo.
Leia a íntegra no capítulo A Essência da Imago Dei no livro O Melhor da Espiritualidade Brasileira, org. Nelson Bomilcar, Editora Mundo Cristão, 2005.
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