Em 1895 os irmãos Lumière realizam a primeira exibição pública de um filme, em um café em Paris. Cinco anos depois Sigmund Freud publica a obra A Interpretação dos sonhos, considerada o marco inicial da psicanálise. De um modo muito particular cinema e psicanálise traçariam caminhos paralelos ao longo do século XX, buscando ambos ampliar o entendimento da mente humana e seus sonhos, pulsões, repressões, vontades, psicoses, pesadelos e interdições.
Se Freud procurou racionalizar o estudo do inconsciente para um maior entendimento do humano, muitos artistas procuraram, ao contrário, o mundo dos sonhos para embaralhar a racionalidade instrumental e assim expandir o discurso sobre as formas de agir, sentir e pensar. Para ambos, porém, sono e vigília faziam parte de um mesmo processo de inteligibilidade do homem. O que isso tem a ver com ‘ATabacaria’, dirigido pelo austríaco Nikolaus Leytner, que chega agora aos cinemas? Tudo ou quase tudo. Pois Freud é um de seus personagens (encenado magistralmente por Bruno Ganz), e a interpretação dos sonhos está em primeiro plano no filme.
‘A Tabacaria’ começa com uma imagem onírica. O jovem Frantz (Simon Morzé) mergulhado em um lago. Perto dali sua mãe (Regina Fritsch) faz sexo com o namorado. Em meio ao gozo, uma tempestade. Franz foge dos trovões e, ensopado, abriga-se em sua casa. O namorado da mãe, rejuvenescido após o amor, mergulha no lago. Ele é fulminado por um raio, enquanto Franz esconde-se dos trovões.
Após a morte do companheiro, a mãe resolve enviar Franz para Viena, para que aprenda um ofício. Ele é recebido na tabacaria do velho Otto (Johannes Krisch), um senhor generoso, que perdera uma das pernas na guerra. Em Viena novos mundos abrem-se para Franz. O mundo do trabalho, onde é introduzido nos segredos do tabaco, e o mundo do amor e da libido, após conhecer a jovem dançarina de cabaré Anezka (Emma Drogunova).
Na tabacaria Franz entra em contato com o famoso Doutor Freud, “médico de loucos”, que é um velho cliente de Otto. Franz e Freud iniciam uma curiosa amizade, onde o jovem troca conselhos amorosos por charutos. Freud o estimula a anotar seus sonhos e, a medida que a ocupação nazista avança, Franz, cada vez mais desiludido com o amor e com a vida, começa a exibir suas anotações na parede externa da pequena loja de tabaco. É belo acompanhar o seu despertar para a paixão e sua descoberta de que a sexualidade abre novos horizontes, mas também cria vigorosos sofrimentos. Aconselhado por Otto e Freud, dois senhores maduros, representantes de uma Áustria que em breve desapareceria sob a sombra do nazismo, o jovem enfrenta este novo mundo. Com a aproximação da ocupação de Viena por Hitler, há um segundo movimento de amadurecimento de Frantz. Desta vez para a política e para a responsabilidade de resistir frente à barbárie.
Nikolaus Leytner não é um diretor conhecido por aqui, pois dedicou a maior parte de sua carreira à televisão austríaca. Mostra, porém, um domínio vigoroso da linguagem e segurança na direção dos atores. A reconstrução da Viena dos anos 1930 também chama a atenção, em um bom trabalho de fotografia e cenografia. O elenco central é primoroso: dos jovens Simon Morzé (Frantz) e Emma Drogunova (Anezka), aos veteranos Johannes Krisch (Otto) e Bruno Ganz, vivendo um frágil e sedutor Sigmund Freud. Este foi um de seus últimos trabalhos, pois Ganz faleceu recentemente, em fevereiro deste ano.
Desde o fim da segunda guerra o nazismo foi repetidamente trabalhado no cinema. São raros os filmes que apresentam alguma novidade em relação a isso. Recentemente o diretor e roteirista Paul Schrader nos presenteou com ‘Adam Resurrected’ (2008), uma obra de peso sobre as marcas deixadas pelos campos de concentração. Frente a este filme, ‘A tabacaria’ é um trabalho menor, o que não é um demérito. A obra de Leytner tem seu horizonte particular. A jornada do jovem Franz do campo para a cidade, sua relação com uma Viena prestes a desaparecer em sua inteligência e integridade, e as descobertas do mundo do trabalho e do amor, da política e do inconsciente, tem força e merece ser vista.
Já a psicanálise também gerou bons frutos ao cinema. Seja na exploração do inconsciente em obras surrealistas, seja em cinebiografias como a de John Huston sobre Freud (que criou uma rusga imensa com o roteirista/ filósofo Jean Paul Sartre, que não quis assinar o filme), ou, mais recentemente, no filme de David Cronemberg ‘Um método perigoso’, que narra a turbulenta relação entre Freud e seu discípulo Carl Jung. Leytner cria uma interessante representação do pai da psicanálise em ‘A Tabacaria’, porém é menos ambicioso ao tratar do mundo onírico.
Ao deixar muito marcada a divisão entre sonho e vigília, o filme acaba por perder o mistério e surpresa dos sonhos, os quais já reconhecemos como algo irreal pela própria forma como são apresentados. Eles funcionam quase como um comentário da vida, uma ilustração dos acontecimentos. Por isso não há estranheza. Tudo é muito claro no filme, quando a força dos sonhos está justamente no que ele oculta. Em defesa de Nikolaus Leytner podemos dizer que este é um “erro” que foi cometido por cineastas maiores, como Alfred Hitchcock em ‘Quando Fala o Coração’ (Spellbound, 1945).
Neste filme os sonhos são desvendados tal como os mistérios de histórias de detetive. Na contramão disso, pensemos em obras de Ingmar Bergman como ‘O Silêncio’, e o poder que há em não deixar tão clara as fronteiras entre o vivido e o sonhado. Os exemplos neste sentido são muitos tanto na obra deste mestre sueco como nas de Buñuel, Fellini e tantos outros. Infelizmente, a escolha narrativa de Leytner é a de não correr riscos.
Feito este reparo, ainda resta a beleza da perda de inocência do jovem Franz e sua escolha pela dignidade, face a sociedade vienense que abraça o nazismo e seus crimes. A obra equilibra tragédia e leveza, ao demonstrar a crescente violência da ocupação, sob o ponto de vista dos que disseram não. Parece uma boa lição para o Brasil, onde um presidente repete bravatas sobre o nazismo e nega os crimes da ditadura. Talvez, se tivéssemos uma cultura de discutir o nosso passado bárbaro como o tem a Alemanha e a Áustria, nossa história fosse outra. Todo cinema sabe a responsabilidade que lhe cabe. Alguns cinemas a assumem, outros preferem ignorá-la. Há silêncios que nem Freud explica.
Fonte: https://oglobo.globo.com/epoca/cinema-a-tabacaria-os-sonhos-23934487